Esse é o termo que recentemente vem sendo usado e exportado dos arraiais eclesiásticos e teológicos para o âmbito das Ciências Sociais e da Ciência da Religião. Ele caracteriza um sugestivo e crescente grupo censitário de evangélicos não praticantes, ou não alinhados à qualquer denominação evangélica. O que era impensado há quatro décadas atrás, agora virou objeto de estudo. Naquela época tinha-se o “desviado”, o “ex-comungado”, seja pela opção moral ou pela adoção daquilo que era tido como herético. Mesmo os menos compromissados, menos frequentes, se indignariam contra uma classificação como a que se apresenta agora.
Em relação ao movimento não há nada novo. Aliás dentro do cristianismo vale a máxima que “não há nada novo debaixo do sol”. Os fenômenos são rebatizados, renomeados, travestidos, mas permanecem com a mesma essência. Na época da Reforma, a ex-comunhão impingida pela Igreja Romana de certo modo desigrejou um grande grupo, que foi organizado em torno de outras confissões, surgindo o luteranismo, o calvinismo, o metodismo e também as igrejas com maior mobilidade porque isentas de uma hierarquia, como é o caso dos Batistas. Perceba que a crítica, o movimento antitético sempre existiu no seio do cristianismo e sua capacidade de preservação, em termos sociológicos, se deveu à capacidade de absorção da crítica, que conduzia a uma reformulação.
Nesse sentido, o movimento dos desigrejados é, por um lado, resultado de uma inconformidade com a estrutura e com a forma de ser igreja. Aliás, penso que de certa forma, parte do neopentecostalismo é o resultado crítico desse movimento ao se deparar com a então rigidez tradicional. Por outro lado ele é o lugar comum de um processo de descarte e abandono de crentes, notadamente pelos seguidores da teologia da prosperidade que não estão circunscritos aos arraiais classicamente tidos como neopentecostais. Estes formam, dentro dos desigrejados o grupo que Darci Dusilek chamou de “flagelados da fé” (DUSILEK, Darci. O Futuro da Igreja no 3o Milênio. Rio de Janeiro: Horizonal, 1997). Pessoas de bom coração, regeneradas, mas que sofreram todo tipo de abuso por parte de sua liderança, sendo desprezados, desperdiçados logo após o extenuante uso.
A maior característica dos desigrejados é a ausência de vínculo. Eles não pertencem a nenhum grupo religioso. Não se enxergam assim, e não permitem que sejam rotulados ou classificados com tal pertinência ou proximidade a um grupo. Se tornaram os novos “hebreus”, peregrinando sobre a terra sem organização ou liderança. Respeitam alguns líderes, mas não estão sujeitos a nenhum deles. Sua espiritualidade é vivida na dimensão pessoal, quando muito familiar, com Deus. Vez por outra fazem uma inserção num ambiente notadamente religioso, num culto. Podem relembrar rever algumas relações, mas não as renovam para serem vividas nessa ambiência.
Perceba: a crítica e mais, o sofrimento que os atuais desigrejados passaram, são reais e pertinentes. Precisam ser acolhidas, pensadas, tratadas. Tudo em amor.
Ocorre que nesta semana tomei conhecimento, para minha surpresa, de líderes que tem arvorado para si a paternidade do termo. E mais do que isso: tem proposto uma forma de organização, de agrupamento dos desigrejados, sob a égide de que fora da Igreja é que está a correta doutrina. Fiquei pasmo ao notar que muitos tem participado de uma “igreja de desigrejados”, mas negando que o grupo é de fato uma igreja, simplesmente porque não leva essa expressão no seu nome (daí minha perplexidade). Ao mesmo tempo em que fazem uma crítica à religião instituída (que deve ser feita), não exercem a consciência crítica para perceber que ao se reunirem como desigrejados, simplesmente deixaram de sê-lo. Não notaram que a única diferença para uma igreja instituída, histórica, é que lhes falta o tempo (são recém-nascidos). Mas que se sobreviverem como “Igreja dos desigrejados” (com esse ou com qualquer outro nome), terão juntamente com o que espero ser uma linda história, uma pesada tradição… Ou seja, ocuparão o mesmo lugar daquilo que hoje é defenestrado por esses grupos (veja falo aqui em grupo e não em indivíduos).
De modo interessante, porém sem maior reflexão, defendem a noção de que as doutrinas corretas, puras, estão do lado de fora da igreja, ou na “novidade” dos desigrejados. Acusam as igrejas históricas de usarem “escamas”, manifestos nos corpos doutrinários que adotam. Esquecem-se que, de uma certa maneira, de pelo menos três coisas:
- que nenhuma doutrina será absolutamente nova no cristianismo. Ao descartar a formulação histórica, também terminam descartando o que pensam, ou o que crerão. Ou esses grupos vão descartar o conceito da Graça de Jesus (para ficar só num exemplo)?
- ao dizer que não aceitam as doutrinas das Igrejas e sim, por exemplo, o que Jesus disse, não percebem que acabaram de formular um rígido ponto doutrinário. No entendimento de Emil Brunner, não há como fugir da formulação doutrinária. Ela necessariamente seguirá e comporá a coluna vertebral de qualquer grupo religioso, ainda que receba um outro nome (BRUNNER, Emil. Teologia da Crise. São Paulo: Novo Século, 2004). Não há religião sem doutrina. Pode haver doutrina sem religião.
- pode ser que a doutrina no fundo seja uma “escama” ou uma “lente”, como preferir. Nesse caso, todas as religiões possuem suas escamas/lentes. Talvez o melhor seja combinar esses termos aqui. Em todas as religiões há doutrinas que nos ajudam a ver (lentes) e outras que nos atrapalham a enxergar (escamas). Contudo, todas elas são em alguma dimensão resultado da percepção humana (SCHLEIERMACHER), o que nos torna precavidos contra demasiados purismos.
Por fim destaco que a religião não só possui malefícios em sua corporificação social. Ela também possui muitos benefícios. Até aquela mais rígida comunidade de fé traz benefícios para aqueles que se reúnem ali. Não é à toa que Alain Botton propôs numa obra homônima “Uma religião para os ateus”, na qual defende o ajuntamento, mas sem Deus, enquanto o desigrejado “clássico” (perdoem-me!) postula justamente o contrário: Deus sem ajuntamento.
De modo algum desrespeito qualquer desigrejado. Penso que quem se deu por uma igreja e acabou decepcionado merece toda a atenção e cuidado. De certo modo eu mais ou menos sei o que você desigrejado pelo formalismo excessivo ou pelo abuso de uma liderança, passou (e sei por dentro). Daí minha empatia por você. No entanto convido você a lembrar do amor que Cristo tem pela Igreja (Ef.5:25b), na missão do Espírito, e em todo potencial de serviço para Deus que você tem e que pode também ser usado dentro de uma comunidade de fé.
Sua salvação não depende de uma filiação. Depende da fé na Graça de Deus. Mesmo que você nunca mais pise numa Igreja, será reunido comigo e com todos os demais em todos os tempos na eternidade. Se não pudermos desfrutar da convivência aqui, certamente teremos “muito tempo” para aproveitar lá.
Só uma coisa que é difícil de aceitar. Líderes se apropriando do termo e se propondo a ajuntar os desigrejados numa nova igreja que não tem nome de igreja. Numa igreja que fala diferente o nome igreja. Lembre-se que o que você busca, assim como eu, e onde reside o cerne da crítica, é numa forma livre, espontânea, acolhedora e amorosa de ser igreja. O que todos queremos é o sonho de Igreja de Jesus.
Com carinho,
Pr.Sergio Dusilek
[Quero aqui sugerir três livros que ajudarão a você entender melhor o pensamento por trás deste fenômeno:
- Por que voce não quer mais ir à Igreja?
- Quem precisa de Deus? (Harold Kushnner)
- Alma Sobrevivente: Sou cristão apesar da Igreja (Phillip Yancey)