E sucedeu que, vendo Acabe a Elias, disse-lhe: És tu o perturbador de Israel? Então disse ele: Eu não tenho perturbado a Israel, mas tu e a casa de teu pai, porque deixastes os mandamentos do Senhor, e seguistes a Baalim. (I Reis: 18:17-18)
Perturbador: que causa perturbação; subversivo. Prefixo per: indicando acabamento, ou ação isolada; + turba: multidão, tumulto, turbilhão.
O diálogo se deu durante o período do reinado de Acabe (873-853 a.C.), pouco antes do embate com os profetas de Baal no Monte Carmelo. Israel tinha perdido completamente o referencial bíblico. Já no final do capítulo dezesseis de I Reis, Hilel, completamente distanciado da Palavra, reconstrói Jericó, o que lhe custa dois dos seus filhos. Acabe, o rei, toma por esposa uma mulher espiritualmente maligna (não confunda uma tradição religiosa diferente com malignidade; há membros (Caim, I Jo.3:12), malignos, nas igrejas) que perverte o coração do povo. Assassinatos, grilagem de terras, orgias (essa foi para os puritanos), aconteceram nesse período não só com o povo, mas com os líderes do povo.
A coisa estava tão difícil, que Deus precisa chamar alguém de fora, de Tisbe (?!). Sim, os religiosos, os profetas, toparam aquele sincretismo e pelo conforto palaciano, estavam vendidos a um governo que embora mantivesse cultos a Deus, nada tinha a ver com Ele. Toleraram o conluio e assassinato de Nabote. Toleraram a profusão dos postes sagrados em Israel. O compromisso desses líderes religiosos não era com Deus; era consigo mesmos.
Elias, diferentemente dos tais e claramente direcionado por Deus, ora e por três anos e meio (Tiago 5:17) passa a imperar uma seca em Israel. Ora, se o povo atribuía a fertilidade, a abundância de chuvas para o plantio e farta colheita a Baal, era necessário que Deus mostrasse de modo inequívoco que a benção cai do céu, não brotando do inferno.
Possivelmente foi a partir desse episódio inaugurador do ministério profético de Elias (I Reis 17), que envolve uma oração com largo efeito no espaço público, que a liderança de Israel começou a chama-lo pejorativamente de perturbador. Sim meus queridos e queridas, não é de hoje que se usa a alcunha de subversivo (outra aplicação para perturbador) para tentar isolar e enquadrar o divergente…
Entretanto, o que salta aos olhos no texto é que o subversivo, aquele que nas rodas e redes sociais é visto como desprovido de espiritualidade, é quem ora, e “pior”, é quem Deus atende. Não pense você que não tinha centenas que oravam religiosamente por Acabe e Jezabel e pela nação de Israel. Não pense você que estes que oravam não impressionavam: tinhas roupas sacerdotais, e falavam como pomposos líderes religiosos. Ocorre que, conquanto impressionassem as pessoas, o povo de Deus, não produziam o mesmo efeito no Senhor, que os conhecia.
Mas quem perturbou a Israel? Foi Elias ou Acabe? Qual sentença está correta? A do verso 17 ou a do 18? Me parece que as duas. Explico.
O início da perturbação está em Acabe, como vimos. No entanto, ao instaurar um nova e alienígena espiritualidade no povo, pervertendo-o, Acabe estabeleceu um novo padrão. Ora, se uma tradição se estabelece, sua mudança só pode vir por um processo que envolve uma subversão. Nesse sentido, Elias se torna santa e providencialmente, a resposta subversiva de Deus àquele período de desmandos e de esquisitice religiosa.
Ampliemos um pouco mais essa concepção: o que é a noção de Reino de Deus, senão a subversão (jamais a confirmação) de tudo que aí está? A subversão de todas as convenções que assimilamos, que em nós foram introjetados ao longo dos anos, conferindo ares de normalidade ao que nunca foi normal? Não foi à toa que a poesia foi o estilo escolhido para expressar tão linda subversão, pelo profeta da Graça no Velho Testamento:
E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará, e o bezerro, e o filho de leão e o animal cevado andarão juntos, e um menino pequeno os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, seus filhos se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. E brincará a criança de peito sobre a toca da áspide, e a desmamada colocará a sua mão na cova do basilisco. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar. (Isaías 11:6-9)
Note bem os pares tão opostos, tão paradoxais, subvertendo tudo que sempre aceitamos, pensamos… assim é o Reino de Deus. Um Reino que não se deixa aprisionar às convenções sociais, aos costumes da moralidade, nem às conceituações teológicas. Um Reino que suplanta em muito as amarras doutrinais, nem tampouco se curva a qualquer magistério presunçoso. Sim, porque diante do Rei e da mensagem do Reino, o magistério só pode ser exercido com humildade e poesia… mais provisoriedade, mais dúvidas e menos certezas… perturbador, não?
Embora o exercício do poder cause profunda perturbação, nós que somos do Rei, e por isso proclamadores do Reino, deveríamos ser profundamente perturbadores. Perturbador, não perturbado…
Termino dizendo que os perturbadores padecem de solidão. Sozinhos, balançam estruturas inteiras, motivo pelo qual são constante e covardemente atacados. Estigmatizados por aqueles que deveriam ser seus pares, vêm sua companhia se restringir aos corvos e aos anjos, e quando muito, a um amigo (Eliseu) que se achega. Seus ouvidos estão conectados nos sons que vêm do céu (I Reis 18:41). Suas orações, em compensação, são ouvidas e respondidas. Não raro trazem o céu para a terra. Suas palavras, porque Palavras de Deus, se cumprem, mesmo que seja algum tempo após sua morte. São tão cheios do Espírito, que o Vento, o pneuma do Senhor vem como TURBilhão tomando os perTURBadores para Si. Suas vidas, testemunho, são preservados pelo Senhor da História, O qual não deixa que suas ações sejam apagadas da memória coletiva, da memória social.
Sim, temos ambos os perturbadores entre nós: tanto o padrão Acabe, quando o Elias. Se posso dar um conselho a você? Mire naqueles que estão a léguas de distância dos palácios. Deus está com eles; é neles que a Presença do Espírito é forte. Por isso é que eles perturbam. E muito.
Pr. Sergio Dusilek
sdusilek@gmail.com