É no mínimo curiosa a relação desse texto com o Gênesis 4:24, o contexto da abordagem sobre a Culpa de Caim. Alguns comentaristas alegam que diante da intransigência de Lameleque, que revelava um coração fechado e não apto para o perdão, Jesus apresenta a contrastante necessidade de se ter um coração aberto, pronto para o perdão. Pode ser que Cristo tenha falado 77 vezes. Pode ser que sua referência seja 490 vezes como foi traduzido. Fato é que esse trecho é a chave hermenêutica para entendermos os capítulos 18 e 19, sendo que no capitulo 18 há alguns dos versos da Bíblia que são mais usados.
Por isso que a “recusa” em ouvir (v.17) se torna em sinalizador de alguém alheio a Graça. Porque a Graça de Deus só consegue alcançar os corações humildes. E um coração que um dia foi humilde e agora se encontra endurecido pelo pecado, em algum momento desse trâmite exortativo acabará por reconhecer seu erro, se quebrantará. O coração humilde conhece o perdão e sabe que continua a carecer dele.
O verso 18 já fala da Inclusão que o perdão oferece. De fato, o rol de membros das igrejas não é igual o rol do Livro da vida do Cordeiro. Muita injustiça, muita arbitrariedade foi cometida ao longo da história cristã. Gente foi excluída, excomungada do rol temporal, mas seus nomes continuam no rol eterno. Isso porque Deus não daria a chave da salvação, como não confiou a obra salvadora, a homem algum. O caminho, a obra prefeita e concluída, a dádiva da salvação vem de Jesus. Esse verso então fala de uma postura ao longo da missão da Igreja, qual seja a da inclusão. E essa inclusão só pode acontecer se houver perdão, pois as pessoas precisam primeiro serem aceitas para depois serem acolhidas/recebidas no seio da Igreja.
O verso seguinte (19) aborda um dos milagres que Deus faz continuamente na vida da igreja. Como pessoas diferentes, com cosmovisões diferentes, poderão pedir a mesma coisa? Essa concordância, fruto da convergência, é sinal da ação de Deus no meio do Seu povo. Uma pergunta aparecer agora: como manter um grupo junto? Somente se houver perdão…
No momento em que há graça encarnada no perdão na Igreja de Jesus, a presença dEle é sentida (v.20). Não precisa de manipulação, nem indução emocional. Onde o amor se materializa em perdão, as pessoas percebem a presença de Jesus. É mais do que Sua garantia de estar na reunião… é a convicção de que Ele está reinando ali. E num culto em que Cristo foi entronizado, as pessoas sairão mais graciosas dali.
Por fim o perdão mantém o coração amolecido, e não endurecido (19:8). Perdoar é sinalizar a possibilidade de renovação. Por isso o divórcio acontece: pela falta de perdão. Jesus ali não estava autorizando um tipo de divórcio, como os legalistas querem ler o texto. Jesus estava dizendo algo mais profundo. Quer resgatar o que existia no princípio? No princípio era o Verbo, no princípio era só a Graça, só Jesus. Enquanto houver perdão, mesmo que haja o pior tipo de ameaça a continuidade conjugal que é a infidelidade, haverá esperança num prosseguimento da caminhada a dois.
A grande lição que fica desse diálogo entre Pedro e Cristo que se transforma na chave hermenêutica desse texto é que na Graça não há contagem. Uma vez contabilizado o perdão, ele deixa de ser perdão. Por isso Deus nos perdoa e coloca nosso pecado no fundo do mar, como disse o profeta Miquéias. Não faz sentido para Ele ouvir um “novo” pedido de perdão. Contudo faz sentido a um perigoso sentimento que é o religioso. Entenda: o legalismo que se alimenta da religião em seu estado puro, quantifica; a Graça de Deus nos qualifica. Por isso Santo Agostinho dizia: “A Graça de Deus não encontra homens aptos para a salvação, mas torna-os aptos a recebê-la.”
Na própria parábola que Cristo conta (v.23-34) Ele aponta para o fato de que a Graça supre qualquer pecado, por maior e mais impagável que ele pareça. Paulo dizia que onde abundara o pecado, superabundara a Graça (Rm.5:20). Dostoiévski assim se expressou em Irmãos Karamazov: “O homem não pode cometer pecado tão grande, que esgote o amor infinito de Deus.” Essa é a maravilhosa Graça de Deus! Aleluia!