QUEM NÃO VEM PELO AMOR, VEM PELA DOR.
(Mateus 19:22)
Nós prosseguimos em nossa série falando sobre Palavras Apenas, Palavras pequenas, no intuito de analisar os jargões evangélicos e perceber neles não só sua superficialidade, como também uma contrariedade com o texto bíblico. Há coisas que precisam ser descontruídas. Nesse sentido vale a pena lembrar que esta mensagem é de cunho temático, o que se diferencia de um sermão tradicional usado aqui na Igreja pela profundidade de análise de um texto. Especialmente hoje vamos abordar vários textos sem perder a profundidade, numa perspectiva transversal.
A questão que se coloca agora é: você acredita no jargão acima? Sua experiência com Deus é fruto dele? Ou conhece alguém que tenha passado por isso? Pode alguém que desfruta de um extremo bem estar caminhar em direção a Jesus sem ter que passar pelo vale de Baca, pelo vale de lágrimas (Mt.19:22)? De maneira interessante, no documentário “A História de Deus” exibido no National Geographic com Morgan Freeman como âncora, no episódio 4 da temporada 1, falou-se do caso de Alcides Moreno, limpador de janelas de Manhatan, que ao subir com seu irmão na plataforma para limpar as vidraças, teve os dois cabos rompidos, caindo do 47º andar. Após 3 semanas no hospital em coma, Alcides viveria perfeitamente se não fosse a dor da perda do irmão. Ele se pergunta até hoje porque ele foi preservado e seu irmão não. A dor trouxe um questionamento, o milagre a possibilidade de fazê-lo; contudo ele não está mais próximo de Deus.
O que se quer mostrar aqui é que não necessariamente a dor encaminha alguém para Deus. Mesmo assim devemos ter a expectativa paulina, revelada no seu diálogo com o Rei Agripa (Atos: 26:28-29). Vamos então há algumas lições bíblicas sobre o assunto.
- A dor abre espaço para o espiritual, para o divino.
Não necessariamente ela desemboque em Jesus. Contudo parece-nos verdadeiro que a dor abra espaço para o divino, para o espiritual. Isso pode especialmente ser percebido na Europa após a modernidade. O critério do uso, da utilidade afetou a religiosidade. Deus e a religião passaram a ser hipóteses inúteis (Edouard Bone). A secularização e o progresso científico deslocou, ou mesmo descartou Deus. Contudo as situações limites (Karl Jaspers) para as quais são necessárias expressões limites (Paul Ricoeur) continuaram. A morte e a perplexidade continuaram invadindo a vida das pessoas e, ainda que não seja suficiente para ensejar um relacionamento com o divino, pelo menos abre janelas para experimentá-lo ou busca-lo nos momentos de dificuldade. Não raro templos vazios nos serviços dominicais encham nos momentos funerários.
Ao que tudo indica em parte do mundo, a mais desenvolvida, a idéia de uma religião que tivesse mais aspecto de capelania ganhou força, como previa Charles Elliot. É inevitável que na dor o ser humano busque um lenitivo. Por isso que Charles Spurgeon afirmou que “Deus sussurra nos momentos felizes, mas grita na dor!”. Não é que Ele grite, mas que nossa sensibilidade aumenta, pois a morte, sua iminência ou mesmo sua violência nos remete a nossa condição criatural.
- Se a dor abre o espaço para o divino, é preciso que as pessoas sejam conduzidas a Jesus.
Perceba que a dor não é garantia de encontro com Jesus, mas de abertura para o espiritual. Dessa feita, as pessoas se abrem para qualquer coisa, inclusive para Deus. Mas perceba que muitas para encontrarem Jesus precisarão de uma condução, de alguém que O apresente. Não foi esse o caso do Paralítico de Carfanaum e do Cego de Betsaida? A dor de cada um os dispuseram para encontrar Jesus, mas se não fossem conduzidos até Ele, possivelmente jamais o encontrariam.
Fato é que na literatura bíblica são poucos os casos (como o da mulher hemorrágica e do cego de Jericó) de pessoas que encontraram sozinhos Jesus na dor. É preciso que alguém os conduza, os apresente ao Mestre. Quem se habilita?
- E isso nos leva a 3ª lição: A grande, diria até esmagadora, maioria dos personagens bíblicos não vieram a Deus pela dor, mas a experimentaram porque vieram.
Não foi assim com Jó? Tão piedoso que cultuava a Deus por si e pelos outros, por seus filhos no receio que alguém esquecesse fazê-lo. Sofreu por amar a Deus, num drama que nós leitores somos introduzidos, mas que ele vivenciou sem saber do preâmbulo do capítulo primeiro, o que só aumenta a perplexidade.
Não foi assim com Davi que pastoreava o rebanho de sua família e que depois da divina unção experimenta dor, perseguição? E com Neemias? O Forest Whitaker (O Mordomo) de sua época, estava servindo ao rei até que sente o chamado para retornar a Jerusalém e experimenta dor na alma, tramas, ameaças… ao reconstruir os muros de Jerusalém.
Não foi assim com Daniel? E Atos 12? Tiago martirizado e Pedro salvo… assim como os irmãos Moreno citados no início desta reflexão. Isaías, segundo a tradição, fora cortado ao meio; Pedro crucificado de cabeça para baixo; Paulo decepado; Oséias experimentou a dor da traição ao se casar com uma prostituta.
Não foi então a dor que os levou a Deus, mas “Deus os levou” a dor. Não que Deus impinja o sofrimento a alguém, mas que ao obedecê-lo e amá-lo sobre todas as coisas, é possível e eu diria, bem provável, que experimentemos algum tipo de dor. Deus recebe, acolhe tanto as pessoas que vem pelo amor, quanto as que vêm pela dor. Deus as acolhe como elas estão como elas vêm. Contudo é mister notar que foi justamente a dor que tornou os personagens que citamos em grandes. E é na dor deles, que também é a nossa, que nos identificamos. A dor não é mandato divino mas seu grande instrumento de modelagem da vida tanto daqueles personagens presentes no texto bíblico, quanto da nossa vida.
O fato deles terem sido modelados ou mesmo passíveis de modelação, não é só o grande fator de identificação que temos para com eles, mas também seu elemento diferenciador da literatura clássica. Nesta última os heróis eram perfeitos, elevados, inatingíveis. Já na Bíblia eles são imperfeitos, têm seus corpos e almas marcados pelas dores e pelas vicissitudes da vida. Enquanto a literatura clássica reproduzia deuses ou semideuses, a literatura bíblica apresenta homens e mulheres com todas as suas imperfeições. Não é a toa que Auerbach fala da quebra do decoro, da biensancé, promovida pela Bíblia.
De uma forma especial a Graça de Deus, Sua face, brilha em nós quando passamos pela dor! É como Paulo constatou: o poder dEle se aperfeiçoa em nossa fraqueza (I Cor.12). Deus escolheu a via da fraqueza, do servo sofredor, para se revelar. Escolheu também pessoas com homoiopatês (Tg.5), termo esse para dizer que o grande profeta Elias era humano como cada um de nós, sujeito às mesmas paixões. E como foi modelado! E que experiências fantásticas ele teve!
Termino, portanto, essa reflexão lembrando que Deus a todos acolhe. O jargão que analisamos e que tem cara de passagem bíblica (tema desta mensagem), na verdade não se encontra na Bíblia (há não ser em Heresias 8:2-rsrsrs!). O fato é que muitos chegam pela dor, mas outros tantos pelo amor. Talvez o segundo grupo não esteja sendo devidamente reconhecido e visualizado. Na sua maior parte oriundo de filhos de crentes que viveram na Igreja desde cedo, seus testemunhos de uma vida que não experimentou o submundo espiritual não despertam muito interesse, numa cultura (inclusive evangélica) que valoriza o trágico, ao invés de celebrar o belo. É verdade então que alguns chegam pela dor sozinhos até Jesus, contudo também é verdade que muitos que estão sofrendo precisam de alguém que os ajude para chegar a Jesus. No entanto uma coisa me parece certa: na literatura bíblica, os grandes personagens, em sua esmagadora maioria, são aqueles que vieram pelo amor e que foram modelados pela dor.
Pr.Sergio Dusilek
sergio@igrejamarapendi.org.br