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dezembro 16, 2021

O QUE NÃO FALARAM PARA VOCÊ SOBRE A ATUALIZAÇÃO DA BÍBLIA.

Filed under: Sem categoria — sdusilek @ 4:06 pm

O QUE NÃO FALARAM PARA VOCÊ SOBRE A ATUALIZAÇÃO DA BÍBLIA.

Pr. Sérgio Dusilek

Doutorado em Hermenêutica Bíblica (UFJF/MG).

sdusilek@gmail.com

Desde que o Pr. Ed René Kivitz usou essa expressão em uma de suas mensagens, uma discussão sem equilíbrio se instalou a partir de pastores e líderes de diferentes denominações. Na autoproclamada e autodemandada tentativa apaixonada de defender a Bíblia, seríssimas acusações foram feitas a um colega que possui anos de honrado ministério pastoral no meio batista. Cerca de oito minutos foram suficientes para invalidar trinta anos…

Conquanto o tenha citado, este texto não é uma defesa do Pr. Kivitz. Ele já o fez de modo brilhante e elegante, o que já foi disponibilizado para todos que desejarem e entrarem em contato com ele. Trata-se aqui da abordagem conceitual do pano de fundo dessa celeuma. É isto que passa a nos interessar agora.

A questão é que não bastasse os defensores da ortodoxia mais inflexível desconsiderarem o principal mandamento (o amor, que também é o primeiro, segundo Jesus, e o maior dom segundo Paulo), também manifestam certo desconhecimento do que é a hermenêutica, bem como das possíveis implicações envoltas numa pretensa defesa de uma não atualização do texto bíblico. Desconsideram estes que descontextualizar para depois contextualizar, representa numa forma, não a única, nem tampouco a melhor, de atualização do texto.

Não só isso: desconsideram que a atualização de um texto é uma regra, uma lei hermenêutica. Diz esta lei que todo texto é atualizado por sua leitura. Mesmo que você não tenha consciência de que faz isso, ao ler, você atualiza o texto, seja ele qual for. É como o ar que você respira: se você pensar para respirar é porque há algo errado com seus pulmões. Atualização pela leitura é automática, mesmo quando não refletida em toda sua extensão.

Desconsideram os que atacam os atualizadores da Bíblia que eles mesmos assim o fazem. Ora, qual pastor, por mais ortodoxo que seja, anda com vestes sacerdotais? Qual irmão anda com túnica? Qual irmão, nessa crise do preço da carne, não optou em algum momento por carne de porco? Na verdade prezados, a luta não é para não atualizar, mas para postular quais as atualizações que são aceitas, uma vez não cobertas pelos diferentes preconceitos que habitam cada um de nós. De igual modo a luta não é hermenêutica, mas por poder; afinal, na história da Igreja, nem toda heresia assim qualificada era heresia… simplesmente era a posição sincera e crente do grupo minoritário…

Esquecem-se tais portadores da espada de “Graysckull” que ao se portarem como ardorosos defensores do texto bíblico, terminam não por protege-lo, mas por fragiliza-lo. Ora, que Palavra é essa tida como de Deus, que precisa de uma milícia blindando-a? Que força é esta que o texto bíblico tem, que autoridade é essa que a ele é intrínseca, que não resiste a “8 minutos”, sem que uma Legião se levante para defende-lo, fazendo-o sem procuração expressa do próprio (implicado?) autor? Ao assim procederem, os mais ardorosos defensores da Bíblia não só mostram desconhecer seus ensinos, como também apontam para um texto frágil como cristal. Penso, ao contrário destes, que a Bíblia é tão forte que ela não só aguenta as diferentes atualizações, quanto, como bem lembra Ricoeur, convida o leitor a uma leitura crítica, cujo clássico exemplo é o exercício de harmonização dos evangelhos.

Por esta razão é que Ricoeur sustenta que o texto bíblico não é sagrado. Em sua perspectiva, AINDA BEM que é assim. Um texto sagrado por definição é um oráculo, uma recepção pura e cristalina da mensagem de Deus. Nessa condição ele não admite nem interpretação, precisando ser recitado, sofrendo uma leitura literalista; nem tampouco tradução, uma vez que esta sempre envolve um trabalho hermenêutico e de, pasmem, ATUALIZAÇÃO do texto, devido a dinâmica da própria linguagem. Traduzir envolve perda, luto: mas qual parte pode ser perdida? Cabe ao tradutor escolher qual parte do Sagrado deve ser mantido? Teríamos que recitar textos que não são os originais, nas línguas originais, numa repetição sistemática sem fim. Uma chatice.

Soma-se a estes fatores a básica confusão entre atualidade e atualização. Atualidade é a capacidade, pertinência de algo feito em outra época para os dias atuais. Atualização é o processo pelo qual trazemos algo importante do passado, adequando-o para nossos dias. Ora, a atualidade do texto bíblico não está atrelada somente a seu aspecto espiritual, mas também à sua extraordinária condição literária. Seja o realismo tal qual defendido por Auerbach, seja o realismo psicológico de Robert Alter, a Bíblia segue atual porque trata dos problemas existenciais, demasiadamente humanos.

Já seu processo de atualização pode ser visto especialmente na segunda raiz do problema hermenêutico de Ricoeur: a passagem da palavra para o evento, para o discurso, no que chamamos de proclamação, de querigma. A atualização acontece especialmente aqui, uma vez que é necessário comunicar de modo que os ouvintes entendam. Aqui ocorre o que Auerbach chamou de interpretação reinterpretativa, cujo exemplo maior estava em Santo Agostinho que entendia que sua homilia deveria ser abrangente dado o caráter universal do Evangelho e a urgência da mensagem de salvação.

Lembro também, e aqui faço uma analogia com a tecnologia da informação, que todo sistema que não sofre atualização está fadado a ser superado, esquecido, abandonado. Se uma máquina (hardware) não suporta updates, ela será descartada. Num mundo em constante e rápida mudança, o que não pode ser atualizado cai em rápido desuso. Nesse sentido, cabe-se perguntar se o pós-cristianismo europeu teria como único responsável o liberalismo teológico, ou se ele não seria em grande parte resultado de uma teologia que desaprendeu a dialogar com seu tempo, que perdeu sua capacidade de atualização assumindo o esgotamento de suas formas.

Aliás, esgotamento é resultado da incapacidade responsiva e dialogal de algo, de uma cultura. Ao defender a não atualização do texto anunciamos o seu fim, seu esgotamento, sua restrição a um tempo memorial. Esgotamento que implica em colapso cultural e estrutural. É isso mesmo que queremos? Estaríamos a defender uma Bíblia que não alcance, que nada tenha a falar à próxima geração?

Um texto que não se atualiza se estratifica no tempo. Ao se estratificar o texto (bíblico, no caso), perde sua vivacidade e a fé deixa de lado seu componente de vitalidade. Ele também passa a dispensar, em última análise, a iluminação do Espírito Santo que o vivificaria no ato da leitura. As letras seguem mortas e as cartas de Deus (2 Cor.2:2-3) que somos nós, se tornam tão mortas quanto as letras.

Como decorrência desta estratificação e esgotamento, temos algo ruim. Trata-se da soberba característica em muitas gerações de se achar a última a pisar a Terra. Ou pior ainda: achar que a última palavra em termos de interpretação será a nossa ou aquela que nós indicarmos, subscrevermos. De fato, uma realidade bíblica que as mais diversas atualizações preservaram é que Deus não costuma operar em meio a soberba. Seja ela geracional última; seja ela como pretensão à última palavra.

Termino dizendo duas coisas. A primeira delas é que a Bíblia sempre sofreu processos de atualização dos seus ensinos em cada geração para a sua própria geração. Tais leituras sedimentaram camadas de uma história interpretativa, muita dela constituída na forma de comentários. Caso nada mais pudesse ou devesse ser dito, poderíamos ter parado lá atrás. Mas… como foi bom ter continuado! Quantas novas perspectivas se somaram àquelas primeiras!

Por fim, espero que tenha ficado claro que não nos cabe discutir a ATUALIZAÇÃO. Ela sempre aconteceu e acontecerá. Cabe-nos, quando muito, discutir os horizontes possíveis de tais atualizações. Veja bem: possíveis não por conta da falta de profundidade da Palavra, ou mesmo da força inerente ao texto bíblico; mas por conta dos preconceitos que carregamos e que são fatores limitadores da interpretação, uma vez que compõem a nossa pré-compreensão. Não é a Bíblia, então, que não suportaria um alargamento dos horizontes hermenêuticos; a limitação está no intérprete. Cabe-nos, portanto, dialogar sobre esses horizontes; no entanto, jamais elencar a parte com a qual não concordamos como herege. Mesmo porque, heresia é chamar gente sincera e amiga de Jesus de herege; heresia é chamar de impuro, aquele ou aquela a quem Deus purificou (Atos 10), mesmo que para você ele/ela seja repulsivo e imundo como a carne de porco era para os judeus.

Afinal, o poder do Evangelho é tanto a certeza de que não há impuro que não possa ser purificado, quanto a dúvida sobre se é possível purificar o que está (ou se acha) puro. Lembre-se: os sãos não precisaram do Médico dos médicos; nem tampouco os que se pensaram salvos foram achados pelo Salvador.

Muita Paz e Graça sobre você.

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