A mitologia, e a grega em especial, foi a primeira forma discursiva de elaboração do ser humano sobre os dramas humanos, existenciais. Num certo sentido, a mitologia se torna então não numa lenda fantasiosa, mas num primeiro grande esforço da linguagem, numa ação, por assim dizer, pré-científica (Mircea Eliade) (lembre-se que a Ciência nasce com a Filosofia Grega, a qual sucede, por assim dizer a fase mítica). Num resgate a partir do final do século XIX e do século XX, especialmente em Heidegger, o mito passou a ser encarado como uma fonte também religiosa, o primeiro registro de uma relação/religiosidade pura, da captação de uma revelação primeira (Giambattista Vico). Nesse sentido o mito não se encerra no seu texto, mas ele abriga outras possibilidades para além dele (Northrop Frye).
Por que falamos de Mitologia? Porque ao retratar o drama existencial humano encontramos na mitologia grega a estória de Níobe. Esposa do rei de Tebas, fecunda, deu a ele 14 filhos (7 filhos e 7 filhas). Como Anfion tinha outra esposa, mãe de Artemis (Diana) e Apolo, nessa rixa conjugal fruto de uma relação bígama, Níobe provocava Latona por conta de sua fecundidade (assim como a história de Leia e Raquel, com Jacó; ou ainda de Ana e Penina com Elcana, ambas na Bíblia). Os dois filhos de Letona (Diana e Apolo) resolvem tomar as dores da mãe, e matam então, usando flechas, os 14 filhos de Níobe, a qual foi impedida de sepultar os filhos por nove dias. Sua dor, ela que fora a primeira a ser abusada por Zeus, foi tão profunda que se transformou num rochedo (ou ainda que Zeus a transformara naquilo que ela se tornara). E ao falar de Níobe, estamos retratando o drama do perdào nas relaçoes humanas.
Ao convidar voce para ler Lm.3:22-23, quero fazer uso de três figuras bíblicas, que emergem da Palavra, e que, numa aproximação lateral, ajudam a clarear o texto e a refundar o conceito de perdão. Falo das figuras: do Maná (Exodo 14); do Degelo do Monte Hermom (Sl.133) e do Divórcio – coração de pedra x coração de carne (Mt.19 e Ez.36). Perdão é o que recai sobre nós todas as manhãs da parte de Deus, pois ele é a própria transmissão da misericórdia, sendo esta compreendida por aquilo que Deus NÃO nos dá, conquanto seja do nosso merecimento receber.
A figura do Maná aponta para uma provisão divina. Para um renovo cada manha. Para aquilo que é dado por Deus em quantidade necessária para nosso dia-a-dia. O Maná era renovado a cada manhã. O que se quer aludir é que Deus nos dá uma quantidade diária de perdão suficiente para que façamos uso dele ao longo do nosso dia. Por isso que o sol não precisa se por sobre a nossa ira… Essa quantidade diária não pode, nem deve ser estocada. Na verdade, o perdão é o único FUNDO que quanto mais se usa, mais se saca, mais se tem. E é o próprio Senhor quem repõe a cada manhã.
Já a figura do degelo do Monte Hermom, que se localiza na parte mais ao norte da Palestina, aponta para o fluxo que precisa haver na nossa vida. Não existimos para reter, deter o fluxo. Existimos para dar vazão a ele. Em outras palavras, somos canais da Graça e não represas dela. Se Deus tem nos dado saúde, que nós a invistamos em ajudar o nosso próximo; se Deus tem nos dado recursos, que aprendamos a repartir e compartilhar; se Deus tem nos dado conhecimento, que transmitamos aos outros, passando ao largo da criação de uma pretensa reserva de mercado. No período do verão, o Hermom sofre o degelo e essa água desce abastecendo os rios e ribeirões da região, desembocando no Mar da Galileia. Deste mar/lago da Galileia/Genezaré, a água segue pelo Rio Jordão até desaguar no Mar Morto. O Mar que não se basta, que mantém o fluxo, possui vida. Aquele que rompe com o fluxo, o Mar Morto, acaba sem vida. Quem só recebe, ajunta e absorve, sem compartilhar acaba morrendo. Não foi essa a figura que Jesus usou ao falar da parábola do rico que só trabalhou para juntar e que num determinado momento da vida falou para si mesmo “Ó alma! Deita-te! Regala-te! Quantos bens você tem para seu desfrute!”. Jesus qualificou quem age assim como louco, e como alguém que seria visitado pela morte em breve. Não estamos aqui para represar o fluxo da vida, do Rio da Vida que corre do Trono de Deus. Ao degelar pessoas e relações hibernadas no frio pela falta de perdão, trazemos vida à nossa volta. Irrigamos a terra seca das relações rompidas com perdão. Lembre-se do final do texto (já não mais parabólico) da parábola do credor incompassivo (Mateus 18), Jesus lembra de um fluxo: se não perdoarmos, nosso perdão será retido, ou seja: sem perdoar não recebemos perdão.
A terceira e última figura que traz luz ao texto lido está na fala de Jesus sobre a “dureza dos corações” (Mt.19). Nem toda relação divorciada, que também não quer dizer que seja somente no casamento, mas igualmente no trabalho, vizinhança, entre amigos, o é por conta da falta de perdão. Contudo me parece claro dizer que, senão em todas, pelo menos normalmente o divórcio nas relações está ligado a falta de perdão. E é essa falta de perdão que endurece nosso coração e põe fim à relação. Torna nosso coração como de pedra. Ao passo que o perdão nos mantém com coração de carne, pois nos humaniza. Nos tornamos humanos ao pedirmos perdão a Deus; somos humanos ao perdoar os outros. Perceba que a lógica do perdão não envolve nem um reconhecimento formal do ofensor, pois no prisma cristão é sempre uma atitude e também sentimento a ser tomado e desfrutado pelo ofendido. Envolve não a partilha da razão, das justificativas, mas a distribuição do perdão. Perdão bíblico não é partilhar as responsabilidades ou mesmo compartilhar a culpa (veja Gen.3). É distribuir Graça. Porque aquilo que não pode ser reparado só pode ser consertado pela Graça. Fazemos isso com o perdão.
Termino esta reflexão com uma pergunta: quem precisa de perdão e de quem? Bom, nós precisamos de perdão. Quando falo nós estou abordando a categoria humana. Somos os humanos quem precisamos de perdão. Perdão de Deus, pelos nossos pecados, inclusive aqueles que cometemos sendo salvos; perdão para nós mesmos para que não desenvolvamos uma auto-punição que nos remeta a uma vida de sofrimento sem fim, de purgação, ainda que inconsciente; de perdão aos outros, pois é impossível conviver sem ofender e sem ser ofendido. A palavra de ordem é perdão. E assim como Deus se renova e renova a humanidade a cada manhã, que sejamos instrumentos de renovação também. Perdoe e seja perdoado.
Mas para você que está com o coração pesado e não consegue perdoar ainda alguém, sugiro:
1) que você ore pedindo e renovando a Deus seu desejo de que Ele lhe ajude a perdoar;
2) que você olhe para seu ofensor a partir de você… ele é tão falho quanto você. Via de regra queremos a forca para o ofensor, desde que não sejamos nós os que ofendem. Reconhecer a própria humanidade e a do outro é um bom início para usufruir o fluxo do perdão;
3) se o ofensor e a ofensa não lhe motivam a perdoar, olhe para o exemplo de Jesus (Mt.18). Que o perdão de Cristo seja então a motivação para que você perdoe.
4) tome uma atitude de perdoar. Decida. E depois vigie seu pensamento para não dar vazão a nova alimentação. Aos poucos esse pensamento negativo da vingança vai sendo substituído;
5) lembre-se também de fatos e fatores bons relacionados ao ofensor. Isso também ajuda a relativizar a ofensa e, ao fazê-lo, se torna mais fácil perdoar.
6) se quiser e puder, converse com o ofensor, mas somente após o assunto estar resolvido em seu coração.
Que Deus lhe ajude a perdoar!
Pr.Sergio Dusilek
sdusilek@gmail.com