O que os “hillarystas de Portland”, e progressistas do mundo atual têm em comum? Sucumbem à mesma tentação da qual se dizem vítimas: são tão intolerantes quanto os conservadores mais “encardidos”… Se dizem vítimas da intolerância, porém quando têm oportunidade analisam o outro lado com a mesma intolerância que doeu no próprio lombo…
É estranho especialmente porque os tais “progressistas” fazem isso em nome de Jesus. Se dizem mais afinados ao discurso do Mestre, no entanto se esquecem, assim como os conservadores, de inúmeros textos que citam a Graça no juízo e que mostram um Jesus com muita consciência dos espaços onde estava. Tal consciência é demonstrada pelos momentos de provocação despertada pelo Senhor, bem como por célebres frases como a de resposta à Maria nas Bodas de Caná: “Ainda não é chegada a minha hora”.
O problema da intolerância é que ela produz vítimas a partir da vitimização, assim como produz algozes caricatos. Nisso não há bem-aventurança, pois se trata de justiça pessoal e não da Justiça. Não são poucos os que se lamuriam, nem é incomum ver as mesmas caras (me perdoem a “força poética”) “lambendo as feridas”… Por que não caras novas? Esquisito também é o usual e fantasioso processo de resignificação que alguns auto-vitimados inventam para interpretar seus insucessos e dissabores… fica mais palatável na regurgitação “saborear” esse velho alimento com o novo sabor da interpretação pessoal… Agora quando voce descobre a história e conhece o “algoz”… ah! era só uma caricatura de mau gosto.
Intolerância sofre quem não lê seu ambiente, ou que apesar de fazê-lo, resolve ser provocador, cutucando o sistema. Contudo aí reside uma questão: ora, se sabe onde está e provoca o sistema, tem ainda esperança que o sistema vai ser caridoso? Me perdoe, mas acho esse discurso o pior possível. Se alguém não consegue perceber que ao ir contra o sistema ele se voltará contra a própria pessoa, então não estamos falando de adultez, de (in-)tolerância, mas sim de infantilidade, de limites extrapolados. Se chamo o sistema de demoníaco, não posso esperar dele serenidade e sim, “estrebuchamento”. Nesse caso, perde-se a oportunidade de valorizar portas que estão sendo abertas dentro da tão criticada instituição. É mais ou menos assim: há uma crítica porque a instituição nada faz, não se pronuncia sobre aqueles assuntos, não promove o debate; quando alguém dentro dela consegue fazê-lo, chuta-se a porta na entrada e na saída. Volta-se a falar para as minorias, num eterno “chover no molhado”, naquele ambiente já talhado para tolerar aquele discurso. Ora, se meu discurso só cabe num pequeno mundo – esse mesmo daqueles que lambem as minhas feridas e que se tornam meu público cativo, é porque de algum modo trilho uma espécie de caminho da intolerância, ainda que possua uma viés considerado aberto, contextualizado, no entanto, sem ser dialogal em toda extensão do termo. Sim, em nome do processo de aprendizado e da mudança cultural eu preciso dorar a pílula. Não fazê-lo é ou ausência de amor, ou flerte com a confusão.
A intolerância não sacrifica os intolerantes, mas sim os tolerantes. Estes que não estão dispostos a ler a realidade e a ver algo um pouco diferente do que se acostumaram a ver a e defender. Defesa… talvez aqui, num viés apologético manifesto numa teologia ou numa ideologia, resida o maior potencial da intolerância. Nessa hora, meu argumento se torna maior do que o outro (não do que o do outro, mas do que a pessoa do outro). Ao atingir esse nível da imposição do discurso, por mais “cabeça aberta” que seja, me torno intolerante, “cabeça feita”. Se só consigo ver bondade no outro quando o outro pensa como eu, possivelmente é porque sofra (soframos) de “intolerancite”.
Esta foi a tônica da ironia de Voltaire. Ele dizia, em suas cartas filosóficas que a Bolsa de Valores de Londres era um espaço real de encontro de diferentes religiões, mas que os templos, sinagogas e mesquitas que deviam promover esse respeito mútuo, na verdade semeavam a discórdia. É de Voltaire também que vem um chocante relato de intolerância religiosa em Tolousse (França), em março de 1762, que para ele era como que um “trovão irrompendo na serenidade de um belo dia”.
Ele conta que um comerciante calvinista, estabelecido com seu comércio em Tolousse por mais de 40 anos e que possuía em sua casa uma cozinheira católica, teve seu filho Marc-Antoine desejoso de não mais seguir o calvinismo nem a empresa familiar. Queria ser magistrado e para tanto, à época, era necessário um certificado de catolicidade o qual, por motivos óbvios (naquele contexto de acirramento das tensões religiosas e das guerras de religião na França), lhe foi negado. Seu filho então é encontrado morto em casa, e Jean Calas acusado de tê-lo estrangulado. A multidão ensandecida interpreta que o pai teria matado o filho (ele pode ter se enforcado também) o que faz com que Jean Calas seja levado a um conselho de 13 magistrados que o condenou a morte com oito votos a favor e poucas provas materiais. Para Voltaire, o excesso religioso gerara um crime – ou do pai com o filho ou do juízo com aquele pai…
Intolerância sempre gera crime e morte. Intolerância mata quando à agenda se torna maior que a pessoa, que o outro. Nessas horas, por mais pensador que voce seja, seu parâmetro de igualdade não é com Jesus que sabia que o “sábado fora feito por causa do homem”, mas sim com os fariseus, para os quais o homem fora feito por causa do sábado. A lógica inversa que propõe uma agenda que considero inteligente e necessária, se torna a lógica inversa do Mestre quando sacrifica pessoas pelas proposições. Aí a ética deixa de ser cristã e se torna uma ética prática, tal qual preconiza Peter Singer (para ficar num exemplo).
A intolerância se manifesta no enquadramento… quem disse que só determinado grupo pode analisar aquele tipo de assunto? Aliás, por que não promover a diversidade de olhares? Por que as análises, os círculos de debates sobre os movimentos “ocupa”, não são feitos com aqueles que discordam da ação? Onde está o diálogo, o debate e a tolerância nisso? Pois então, há diferentes formas de enquadramento: por titulação, por grupelho do qual participa, por afinidade ou interesse em quem fala, por concordância prévia, entre outros. Seja como for, todo enquadramento é intolerante.
A intolerância gera isolamento e zonas de exclusão e conforto. Exclusão para quem pensa diferente; conforto para quem pensa igual. No entanto, em Jesus vemos um círculo apostólico inclusivo. Quando diminuiu de 12 para 11 foi porque um quis sair. Em todo tempo em que Jesus esteve com os apóstolos, bolsonarianos (Mateus) e freixos (Simão Zelote), conviveram. Divergiram, discutiram, mas conviveram. Em Jesus aprendemos a tolerar as pessoas e a ver bondade em gente que parece “aliada do mal”. Em Jesus somos confrontados a morrer não pelas idéias, mas pelas pessoas, pelas relações. Uma cruz só vale a pena se ela integrar – pessoas com Deus e pessoas com pessoas; caso contrário é desintegração “politicamente correta”.
Quero dizer por fim que não acho ruim a tensão e o conflito, desde que eles sejam provocadores e transformadores. Penso que eles são extremamente danosos quando eles nos tornam atiradores dos nossos “castelos faceboquianos”. Isso porque como os tiros de um navio na costa há 20 km do alvo, nossas balas costumeiramente matam inocentes, quando não a inocência. Esses canhões agregam violência e não paz, e terminam por revelar, no fundo, mas bem no fundo, nosso perturbador estado de espírito.
Para mim o caminho de Jesus sempre será desafiador. Tolerar quem pensa o oposto… e ver nele marcas de um autentico cristão se renova todo dia como um desafio. Por vezes errei e erro com minha intolerância; por vezes fui e sou confrontado com o Espírito que me exorta a viver em paz, sempre que depender de mim. Por inúmeras vezes fui surpreendido com a Graça de Deus ao descobrir em gente tão alheia (eu diria arredia até) aos novos e inclusivos olhares teológicos, um profundo e tocante amor pelas pessoas. Confesso minha gratidão a Deus por esses momentos, pois eles me convidam a sair do meu castelo; a ver que embora em barcos diferentes, estamos na mesma batalha, na mesma luta por encarnar e imergir tudo que está à nossa volta no sublime amor de Jesus.
Dessa maneira agradeço ao Pr. Remy Damasceno, pessoa íntegra, amorosa, cristã, com compromisso com a Palavra, por ser instrumento de Deus para essa auto-reflexão (sem dizer uma palavra – rsrs). Sem dúvida, junto com Clemir Fernandes, são duas pessoas das mais tolerantes que tive a oportunidade de conhecer na vida. Voces espelham Jesus na candura com que tratam o outro e, em fazendo isso, me inspiram também. Como Schleiermacher falou, a religião precisa de heróis para inspirar seus seguidores. É assim que os vejo.
Pr.Sergio Dusilek
sdusilek@gmail.com