Martin Luther King Jr., Harry Emerson Fosdick e Walter Rauschenbush: Os Batistas que o Mundo Celebra e que a CBB faz questão de esquecer.
“Pela fé Abel, mesmo depois de morto, ainda fala.” (Hebreus 11:4c)
Ontem, boa parte da mídia mundial deu destaque aos 50 anos do martírio de Martin Luther King Jr. (MLK). Uma vida que ainda fala pois as razões de sua luta ainda não cessaram; uma vida que ainda fala tal foi o impacto de sua entrega à causa que o preencheu: a igualdade racial. Igualdade esta só possível e tangível pelo amor de Deus e pelo amor a Deus. Igualdade que não se limita a uma questão racial, mas que a extrapola alcançando as faces social, política e educacional, para ficarmos em três exemplos.
Bem, como ia dizendo, enquanto boa parte da mídia mundial dedicava algum tempo para lembrar a vida de MLK, vida esta decantada pelo U2 em “In The Name of Love”, a Convenção Batista Brasileira (CBB) não fazia uma única menção sequer à data. Absorvida por um ideário de extrema direita, preocupada em condenar líderes da esquerda (ela não se manifestou quanto a Temer, Aécio, Sarney, entre outros), a CBB por simples (?) esquecimento ou por acintoso esquecimento social, não lembrou da data, ainda que o mundo não permitisse seu esquecimento.
Soma-se a isto o fato do homem forte da CBB hoje ser um hábil e simpático pastor afro descendente. Pastor Sócrates ocupa atualmente a diretoria executiva de uma empoderada CBB, após sua reforma estatutária de 2007, feita na Assembléia de Florianópolis (SC). Ora, esse fato torna o aparente “esquecimento” mais grave ainda. Isso porque ou ele aponta para um silenciamento, para uma mordaça colocada sobre o nosso executivo, o que ressuscitaria a horrenda figura de algum capataz assombrando os corredores denominacionais, ou se perdeu a sensibilidade para um fato que continua a acontecer – o preconceito racial.
O que é sobremodo estranho é que justamente os batistas que o mundo aprendeu a valorizar e ainda os ouve, pois suas vidas ainda falam, são justamente aqueles que os batistas, inclusive a CBB, procura silenciar. E aqui, além de MLK faço uma remissão a Walter Raushenbush e Harry Emerson Fosdick. Pessoas diferentes, mas que têm comum o fato de serem americanos, proclamadores da utopia do Reino de Deus (por isso sonhavam de olhos abertos – “I have a dream”), anti-fundamentalistas e que visavam uma transformação social. Em todos uma forte crítica ao status quo, seja ele religioso, político, social ou econômico. Em todos eles uma aguçada veia profética, a mesma que faz uma voz de dentro da esfera religiosa romper as cercas e alcançar os de fora. A mesma veia, a mesma profecia que sendo mensagem de Deus para uma geração, se atualiza. Sobre todos eles, uma valorização social e acadêmica; sim, todos eles são citados e estudados na academia e bem-vistos pelos de fora.
Mas por que então os batistas se calam, e ainda mais, procuram silenciar essas vozes? Não deveríamos nós aproveitar essas trajetórias para construirmos algo a partir do ponto onde esses homens de Deus chegaram?
Penso que em primeiro lugar a dificuldade está na influência landmarkista. A percepção e até defesa, por muitos, de que os batistas são os legítimos descendentes da Igreja Primitiva, ainda que não haja qualquer lastro histórico que subsidie este fato, aponta para um grupo que tem uma equivocada e elevada auto-imagem. O que resulta disso? Entre outras coisas o forte sectarismo batista, marcado especialmente pela noção de muitos que somente este grupo ascenderá aos céus.
O sectarismo batista provoca também um isolamento e ausência de diálogo. A ação batista no mundo se torna um convite as pessoas para entrarem no seu redil e não uma forma de encarar e ministrar às suas necessidades. Bom, pelo menos não àquelas que não sejam espirituais. Ao optar por esse silêncio espiritual fruto de um “orgulho” espiritual, os batistas perderam a oportunidade de influenciar o mundo a sua volta em diversos momentos. Em vários deles se esconderam sob o princípio da separação entre Igreja e Estado, fazendo questão de obliterar que é impossível separar Igreja e Realidade.
Em segundo lugar está num abraçamento de uma postura ideológica de extrema direita. Parece que a cultura escravagista do sul norte-americano continua presente nas relações com as colônias missionárias. Aí você entende o desprezo por Walter Rauschenbush, homem que assim como MLK, refletiu sobre o Reino de Deus. Rauschenbush também se dedicou a refletir sobre o problema do mal. E o mal como problema é principalmente encontrado em entidades supra-pessoais, em organizações, nas instituições políticas e econômicas. Para o teólogo estadunidense, quatro são as principais habitações do mal: o nacionalismo, o capitalismo, o individualismo e o militarismo. Para o ele as forças constitutivas do Reino do Mal podiam ser identificadas com a intolerância religiosa, com a combinação entre corrupção e poder político e a corrupção da justiça. John Landers lamentou em seu livro Teologia dos Princípios Batistas, o propositado esquecimento de gente como Rauschenbush. Perceba: esquecimento para os batistas, porque fora do meio batista ele é pesquisado, lido e, por assim dizer, ouvido.
Como deixamos de ouvir alguém desse quilate? Como desprezar uma vida que pensou o Reino com tanta propriedade?
Com um entorno desses fica fácil compreender porque o fundamentalismo é bem aceito e porque Fosdick é renegado. Ao desconsiderar a ciência histórica em prol de suas lendas caseiras, ao se fecharem para o mundo, os Batistas negam o diálogo. Diálogo entre fé e vida, entre Igreja e Mundo, entre fé e ciência. A defesa da fé é a mais insignificante possível pois é intramuros, isto é, defende para os que estão dentro, sem nem direito saber o que se fala lá fora. Ora, foi contra isso que Fosdick trabalhou em sua proposta hermenêutica. Sua perspectiva de uma ciência que contribuía para o entendimento do texto bíblico, sua percepção de que ela traria novas luzes às perícopes sagradas, pautava a busca por uma relação harmoniosa e não conflitante entre fé e ciência. Esse diálogo segue sendo atual. Sua visão abrangente, sua vida, segue falando a nós mesmo depois de morto.
Fosdick defendeu abertamente o azeite do amor contra a aridez da rígida e estranha interpretação fundamentalista. Identificava o evangelho com a pessoa de Jesus, com o amor de Deus e não nessa perspectiva enviesada da leitura fundamentalista. A essência do evangelho estava sendo perdida pela adoção de uma ideologia. Não foi por outro motivo que em um de seus sermões (Shall the Fundamentalists win?) ele asseverou para toda uma platéia batista: “o amor nunca se engana”, as opiniões sim.
Concordo com Friedrich Schleiermacher (Sobre a Religião) de que o que faz mal e desgasta a religião é, entre outros fatores, a falta de heróis. Os batistas os temos; contudo não os celebramos. Para nós herói bom é o evangelista, aquele que converte multidões, mesmo que em vida tenha estabelecido alianças espúrias. Esquecemos dos mais profundos, daqueles cujos pensamentos ecoam tão forte que arrebentaram as nossas cercas e impregnaram o mundo. Uma denominação que vive em crise como a nossa, o descaso com alguns heróis mostra sua masoquista opção pela sofrência.
Somado a isso há um ciclo vicioso regido pela batuta da mediocridade. Os seminários batistas não falam, não reverberam esses homens, o que aumenta ainda mais a ignorância sobre eles. De modo interessante, isso deveria representar o esquecimento deles, não é mesmo? Contudo, à semelhança de Neemias (Cap.13), Deus preserva a memória dos seus servos. Se os de dentro não valorizam, os de fora estudam eles. Suspeito que parte da explicação pela ausência de um debruçar sobre tais autores esteja na estranheza que o pensamento deles causaria ao próprio pensamento teológico que vem sendo reproduzido (não construído!!) nessas casas. Em outra parte porque a mediocridade reinante na escolha de professores é tão gritante que muitos teriam dificuldade de compreender o pensamento, ainda que pastoral, de MLK ou mesmo de Fosdick.
É lamentável que num período em que a CBB se proponha a pensar o Reino de Deus, nenhum dos seus oradores cite, estude, valorize qualquer um desses grandes homens, pregadores batistas, do passado recente. É lamentável que enquanto o mundo a todo instante pára para ouvir esses três batistas, as vozes batistas que procuram a mídia hoje falem somente para dentro. O tempo passou, a distância deles aumentou não só nos anos, mas também no ideário, nos valores. Somos hoje bem menores do que eles. Nos apequenamos, entre outras coisas, porque não os estudamos. Somos uma denominação que faz questão de esquecer quem sempre deveria ser lembrado.
Nos tornamos uma CBB do esquecimento social,
CBB do fechamento eclesial,
CBB do infeliz pronunciamento presidencial;
Uma Convenção sem Referencial.
Pr.Sérgio Dusilek
(sdusilek@gmail.com)